
Francisco Henriques teve o seu primeiro posto de embaixador na Guiné-Bissau - que dia 27 foi a votos numa segunda volta das eleições presidenciais - onde já tinha estado trinta anos antes, a combater na Guerra do Ultramar. Desta vez, as coisas não foram mais pacíficas, mas o conflito era entre Ansumane Mané e Nino Vieira. Foram onze meses caóticos, que terminaram com a retirada de cerca de dois mil portugueses, sem proteção militar e com bombas a cair por todos os lados. De Portugal, cada um dava uma ordem diferente.
Francisco Henriques da Silva, licenciado em História, começou a carreira diplomática nos Estados Unidos, onde nasceu o filho, em New Bedford, na costa Leste, e onde foi abrir um consulado. Seguiu para Paris, onde esteve durante a transição de Giscard d'Estaing para François Mitterrand, e regressou a Lisboa. Depois veio o Canadá e mais tarde a Comissão Europeia, onde foi assessor do comissário João de Deus Pinheiro.
É então que surge a Guiné-Bissau, Abidjan, na Costa do Marfim, e Nova Deli, na Índia. De volta a Lisboa, fica como diretor-geral dos Assuntos Multilaterais no Ministério dos Negócios Estrangeiros até ser enviado para o México e terminar a carreira na Hungria. Viveu num total de nove países, passou por 70, e todos deixaram histórias para contar.
"É AQUILO A QUE NO MINISTÉRIO [DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS] SE CHAMA A CARREIRA REVLON OU ELIZABETH ARDEN, QUE É A CARREIRA BONITA [RI], EM QUE SE VAI PARA CIDADES AGRADÁVEIS, COMO LONDRES, PARIS, MADRID E POR AÍ FORA"
Como é viver em nove países, ainda por cima com culturas tão distintas?
A primeira parte da minha carreira foi passada em países ocidentais - é aquilo a que no Ministério [dos Negócios Estrangeiros] se chama a carreira Revlon ou Elizabeth Arden, que é a carreira bonita [ri], em que se vai para cidades agradáveis, como Londres, Paris, Madrid e por aí fora - enfim, este não foi exatamente o meu percurso, mas foi parecido. Depois, quando fui para o posto de embaixador, apanhei primeiro a Guiné-Bissau, e foi bastante duro, com a guerra civil, a seguir a Costa do Marfim, com golpes de Estado, e mais tarde a Índia, que se envolve numa sarrafusca com o Paquistão, como era habitual, e estavam quase à beira de um conflito nuclear.
Foi azar ou castigo?
No Ministério já olhavam para mim de soslaio: "Onde é que este irá parar a seguir, que é para eu me manter longe...". Depois disso fui para o México, tudo normal, e para a Hungria, normal também.
Como é ir como embaixador para um país, a Guiné-Bissau, onde trinta anos antes se esteve a combater?
É uma experiência única, penso que é inédito. Sobretudo porque apanhei combate da primeira vez e voltei a apanhar combate da segunda. Mas são duas situações muito diferentes. Da primeira vez estamos acompanhados; temos um pelotão, uma companhia, a nossa tropa. Da segunda vez estamos isolados, entregues a nós mesmos. E há um conflito, que já não é no mato, mas dentro da cidade, em que duas facções andam a bombardear-se de um lado para o outro, há refugiados, há problemas de saúde, há problemas de alimentação, há problemas de água e há evacuações... É uma situação muitíssimo mais complexa e a pessoa não tem com o que se defender.
"ERA OFICIAL DE INFANTARIA COM A ESPECIALIDADE DE MINAS, ARMADILHAS E EXPLOSIVOS, DE MANEIRA QUE TINHA DE ME OCUPAR DESSAS COISAS - E NÃO ERA COM AS INDUMENTÁRIAS QUASE MARCIANAS QUE SE VÊ NOS FILMES, ERA DE CORPINHO BEM-FEITO COM UMA FAQUINHA"
Antes de continuar por aí, gostaria que me descrevesse como foi a primeira vez, quando era ainda miúdo e foi combater na Guiné Portuguesa?
Eu era alferes miliciano. Fui para a Guiné em 1968, quando lá cheguei o general Spínola era o governador. E saí em 1970. Estive em três localidades: Co, o chamado "chão" mancanha, uma das etnias, e foi aí que tivemos o primeiro aquartelamento. O segundo, onde estivemos um mês e meio, foi em Mansabá, no centro norte, e depois em Olossato, que fica no centro da Guiné, na mata, que era junto a uma das bases do PAIGC [Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde]. Claro que esta primeira comissão envolve perigos de vida, eu estava a comandar tropas... Era oficial de infantaria com a especialidade de minas, armadilhas e explosivos, de maneira que tinha de me ocupar dessas coisas - e não era com as indumentárias quase marcianas que se vê nos filmes, era de corpinho bem-feito com uma faquinha. No fundo, era tudo ao molho e fé em Deus, como se costuma dizer. As comissões eram difíceis, não só pela situação de guerra - era uma guerra de fraca intensidade, mas com mortos, feridos, emboscadas, minas -, como pelas condições de vida, que eram más: a alimentação era má, os cuidados de saúde eram deficientes, as instalações onde vivíamos eram desconfortáveis. Poder-se-á dizer que na altura não se vivia muito melhor no Portugal dos pequenitos, mas não estávamos em perigo de vida nem em situação de poder pisar uma mina e perder uma perna ou ter fome no meio do nada.
Afirmou que da segunda vez não tinha com o que se defender. Era embaixador, tinha o apoio do governo português, ou não?
Da segunda vez [1997 a 1999] foi diferente, porque era uma coisa que já estávamos a prever que ia acontecer. Descrevo isso no livro "Crónicas dos (Des)Feitos da Guiné": já se previa. Só que na altura os governantes prestaram pouca atenção a isso. Eu avisei, quando estamos em posto informamos: atenção, há aqui problemas entre facções militares adversas, vão-se pegar, daqui vai resultar um problema complicado, preparem-se. Já se usava fax e telex e começava a usar-se o telefone satélite. Portanto, comunicávamos, fazíamos os nossos relatos, que eram imediatamente recebidos aqui [Portugal]. Cá eram filtrados e levados ao ministro dos [Negócios] Estrangeiros, ao primeiro-ministro, ao ministro da Defesa e, de acordo com a importância, podiam até ir a outros ministros e, eventualmente, ao presidente da República.
O primeiro-ministro de então era António Guterres...
Era. Mas a páginas tantas, quando a situação se complica, o problema é que começa cada um a dar ordens para seu lado, e quem está no local é que se vê a braços com a situação. A diz uma coisa, B diz que é preciso entregar ajuda humanitária, C diz que é quem manda e, no meio da confusão, é preciso fazer sair os portugueses do país. As autoridades portuguesas não estavam precavidas para uma coisa daquelas.
Como não, se tinha colocado o governo ao corrente do que se estava a passar?
O ministro dos [Negócios] Estrangeiros [Jaime Gama] tinha ideia do que se estava a passar, os outros nem tanto. Como sabe, há muitos assuntos que passam pelo governo. Imagine que neste momento há um problema com os portugueses em Marrocos, a verdade é que nós estamos aqui a pensar no que se passou na Assembleia da República na semana passada, se vão ou não subir os impostos, se houve um desastre qualquer em Famalicão...
Mas há alguém que sabe que há um problema em Marrocos e alguém já o transmitiu.
Há, e se de repente surge o problema em grande escala, aí é que o governo resolve actual. Fui informado diariamente sobre o que se estava a passar: Ansumane Mané, que foi chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas de Nino Vieira [presidente da Guiné-Bissau] - e tinham sido companheiros de luta, Ansumane foi guarda-costas de Nino Vieira durante a luta do PAIGC, levou-o às costas quando este foi ferido, andaram em canoas... - zangou-se. Ansumane é de uma etnia diferente de Nino Vieira e até de um país diferente, era da Gâmbia (mas lá os países não contam muito, o que interessa muito no contexto africano são as ligações tribais).
Ansumane Mané, que foi destituído do cargo de chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas...
O que se passou foi que a certa altura há um problema de tráfico de armas para os rebeldes de Casamansa, um movimento do sul do Senegal que pretendia independentizar-se em relação a Dakar. Começaram com acções de guerrilha, e o que os militares guineenses fizeram foi vender armamento. A certa altura há um assalto aos paióis, os cadeados aparecem forçados, o material de guerra é roubado e, em consequência disso, Nino Vieira demite o chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas, o amigo Ansumane Mané. Além disso, há um problema de fundo castrense: os militares que andam a combater na mata já não servem para andar de Kalashnikov a dar tiros. A situação é de paz e esses militares devem ser reintegrados na sociedade. Ora, se isto causa um problema em sociedades como a nossa e levanta um conjunto de questões, imagine como é num sítio sem meios, sem assistência social, nada.
"E É ESTA MASSA ENORME DE ANTIGOS COMBATENTES QUE VAI JUNTAR-SE A ANSUMANE MANÉ E A OUTROS DESCONTENTES DAS FORÇAS ARMADAS, O PANO DE FUNDO PARA O TRÁFICO DE ARMAS PARA CASAMANSA"
A velha questão da reintegração dos antigos combatentes na sociedade...
Os antigos combatentes sentem-se ostracizados, marginalizados pelo poder político da altura, que diz que o que as Forças Armadas precisam agora é de competências técnicas, de saber de computadores, de radares, de mísseis, e não de tipos que andem de Kalashnikov na mata. Por outro lado, os jovens oficiais formados, uns na União Soviética, outros em Portugal, outros no Brasil, outros em França, acreditam que são a nova geração e que não vão precisar da outra gente. E é esta massa enorme de antigos combatentes que vai juntar-se a Ansumane Mané e a outros descontentes das Forças Armadas, o pano de fundo para o tráfico de armas para Casamansa.
E revoltam-se contra Nino.
Revoltam-se contra o Nino. Além disso, há um problema político na sociedade da Guiné-Bissau: consideram que o regime não é democrático. De facto, verifiquei isso in loco, aceitavam-se as regras da democracia, mas não todas. Uma vez falei com o Nino Vieira sobre a separação de poderes, que é uma questão essencial, e diz ele: "Se fulano fala mal de mim na Assembleia, mando prender". Não pode, dizia eu, ele é deputado, pode dizer o que quiser. É como a história de André Ventura [deputado censurado pelo presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, por usar a palavra vergonha], não pode ser... "Mas eu tenho o poder, eu é que sou o presidente eleito", insistia ele. Pois está bem, mas isso não significa que possa fazer tudo. São conceitos muito difíceis, se a nós às vezes custa deixar passar, imagine ali.
Portanto, como disse, não aconteceu tudo de repente, o clima de conflito foi-se intensificando, até se tornar insustentável.
Nino preparava-se para uma viagem ao nível da Organização da Unidade Africana, ía a caminho do aeroporto, a equipa de protocolo e mais uns guardas segue à frente, embarcavam uma hora depois, quando são atacados, e matam o chefe de protocolo. É um levantamento militar, dá-se a tentativa de golpe de Estado. Nino reage fortemente e, esta é a asneira fundamental, vê que a maior parte dos oficiais não lhe obedece, apenas um pequeno grupo cumpre as suas ordens, e decide chamar a tropa do Senegal e da Guiné Conacri, ao abrigo de acordos um bocado mal cozinhados e escuros, que vieram imediatamente. Isto cria na população um sentimento geral de revolta, são tropas estrangeiras que ali estão. Por estranho que pareça, foi aí que senti pela primeira vez que havia um sentimento nacionalista ou patriota por parte da população, apesar das etnias todas. A partir daí é o descalabro: os rebeldes tomam conta da base aérea e dos centros das Forças Armadas e bombardeiam a cidade, ninguém consegue sair, estamos encurralados. Os militares tomam conta da cidade e há escaramuças por todo o lado.
"GENERAL, HÁ UM PROBLEMA COMPLICADÍSSIMO, NÃO TEMOS HOMENS. (...) E, JÁ AGORA, OCUPARAM A SUA PONTA [QUINTA] E ROUBARAM-LHE DOIS PORCOS"
Nessa altura ainda conseguia comunicar com Portugal? Porque sei que em dado momento foram cortadas as ligações telefónicas.
Há uma cena engraçadíssima: havia um clube de caça, que era de um português, que tinha um telefone satélite. A dada altura o chefe do Estado-Maior do Exército vai lá e pede para falar com Nino Vieira, porque não havia linhas telefónicas. E ele [o português] ouviu a conversa, que era uma coisa deste género: "General, há um problema complicadíssimo, não temos homens. Em Bafatá - a segunda maior cidade da Guiné-Bissau - temos cerca de 50 homens, o resto está tudo disperso ou aderiu aos rebeldes, não temos água, não temos munições nem armamento, não há cadeia de comando. E, já agora, ocuparam a sua ponta [quinta] e roubaram-lhe dois porcos". "O quê, atreveram-se a roubar dois porcos ao presidente da República?!" Está a ver...
Lembra-se da última comunicação que fez? Qual era a sua missão, tirar de lá os portugueses?
Essa era a parte mais complicada. Mantive-me sempre em contacto e, felizmente, estavam no local dois homens da Portugal Telecom, que me cederam um telefone satélite, que eu não tinha, e sem isso ficava completamente incomunicável. Foi um milagre. Disseram-me: "Está aqui um telefone satélite, funciona assim, aqui tem e nós vamos embora na primeira evacuação". E assim foi, e foi assim que consegui manter o contacto. Foi de facto uma coisa absolutamente homérica. Depois, a questão era: como vamos retirar os portugueses?
Quantos portugueses havia na Guiné-Bissau nessa altura?
Tínhamos feito uma conta por alto e calculámos 1400 portugueses. Mas rapidamente percebemos que o número era muito superior, cerca de 2000. Porque havia muitos portugueses de cor, com passaporte português e que também queriam ser retirados, mas não fazíamos ideia de quantos eram porque não se manifestavam. Então foi a confusão total. A certa altura, há um navio mercante da Portline, o Ponta de Sagres, em Cabo Verde, e o comandante diz que pode rumar até nós e fazer a retirada das pessoas que se encontravam em missão, não muito mais - mais tarde foi condecorado com a Ordem Militar da Torre e Espada pela sua coragem.
Como é feita a evacuação em condições de guerra?
Quando sei isso, comunico a Lisboa e digo que vamos aproveitar um período de trégua para fazer a evacuação, que é feita sem qualquer proteção militar, é a grande loucura. Isto é, há um barco que chega a uma cidade hostil e que vai atracar para receber refugiados que vão para o porto pelo seu pé, no meio de tiros - é assim como ir a pé pela Rua Augusta até ao Cais das Colunas.
Quem controlava?
O controlo é completamente aleatório. As pessoas partiam de três ou quatro pontos da cidade, da embaixada onde estávamos, da Catedral, do Hotel 24 de Setembro, em direcção ao cais. Disseram-nos que o período de tréguas seria em determinado tempo, o que, em maré alta, nos permitia fazer o embarque. Só que, como não havia comunicações, a evacuação, que devia começar às nove da manhã, começou as quatro da tarde.
Com que consequências?
Os rebeldes, sabendo que o período de tréguas tinha acabado, começam a bombardear o cais de Bissau com Katyushas, que lançam foguetes com 35 Kg de TNT, que deitam este edifício [Fórum Picoas, local da entrevista] abaixo, e com morteiros 120, que furam um bunker. Felizmente, aquilo caiu na água, porque estavam centenas de pessoas no cais para embarcar.
Temeu pela vida?
Medo nestas coisas... A questão psicológica é muito curiosa, depende dos seres humanos. Vi militares de carreira, não vou citar nomes, que estavam nervosíssimos quando foram retirados: "Criou uma mãe um filho para isto", "nunca mais cá ponho os pés"... A minha mulher, que é mulher e nunca tinha passado por uma situação daquelas, teve de dizer: "O senhor tome um comprimido e acalme-se". Às vezes, aqueles que pensamos que são uns valentões são os primeiros a fugir, enquanto outros, uns lingrinhas ou mães de filhos, são os que aguentam mais. No cais, as pessoas queriam embarcar, mas foi o caos total. Até e lá seguiram para Dakar.
Teve de ficar em Bissau, mas a sua mulher, ficou ou seguiu no navio?
Eu voltei para a embaixada, fui eu que conduzi o carro do cais até lá, quase como nos filmes, em que a bombas iam caindo e eu tinha de me ir desviando. A minha mulher também ficou: "Não me vou embora", dizia ela. Foi até muito mais corajosa do que eu, que de vez em quando ficava petrificado, apreensivo quanto à minha situação e à dela. "Mas tu queres ficar aqui?!" "Gosto muito do Pavarotti", dizia ela, e punha o rádio em altos berros, "não oiço bombardeamento nenhum". E era assim [ri].
Essa foi a primeira evacuação, sem proteção militar, mas ouve outras, não ficou tudo resolvido nesse dia.
A seguir houve outras evacuações, sete no total. Chegaram navios franceses, navios portugueses e a Marinha [Portuguesa] enviou duas fragatas, a Corte-Real e a Vasco da Gama. O que acontece, nesta como em todas as guerras, é que há pessoas que não querem sair, mesmo com risco de vida. Têm ali a sua vida, a sua casa, a sua fábrica, o seu escritório, o emprego, a família... "A minha mulher e os meus filhos que vão, eu fico". Mas uma cidade fica reduzida a 100 pessoas.
E também deve haver os que querem ir e não têm como, por diversos motivos. Aconteceu?
Há cenas inacreditáveis. Na primeira evacuação, chega a altura em que tenho de dar a ordem da praxe, como nos filmes: "Mulheres e crianças primeiro, depois idosos e a seguir homens". A dada altura aparece um senhor, diretor do Totta, de lenço na cabeça, uma saia, para entrar como mulher. Tive de lhe dizer: "O senhor vá para o fim da fila, aqui não entra". É assim, há de tudo, tudo o que possamos imaginar.
E os que ficaram, os que estavam em missão diplomática?
Foi muito complicado. Na embaixada ficou um grupo pequeno, até porque tinha muito poucos funcionários. A guerra continua e a casa ao lado da residência oficial, onde vivia o secretário, é atingida. Tinha sido cedida ao adido da Cooperação, que estava lá a tomar o pequeno-almoço e saiu meia hora antes do ataque. Caiu-lhe uma Katyusha em cima, ficou tudo destruído, o sítio onde tinha estado a tomar o pequeno-almoço desapareceu. Depois os rebeldes pediram desculpa, não nos queriam atingir, mas como estávamos na linha de fogo... O Palácio Presidencial estava a 400 metros. Voaram aparelhos de ar condicionado, uma coisa pesada, a 50 metros de distância.
Imagino que a situação tenha gerado alguma acrimónia. Como ficam as suas relações com o governo?
Isso é verdade. Não mencionei nomes, mas lê-se perfeitamente nas entrelinhas. Há uma altura em que faço uma descrição e digo que aquilo pareciam galinhas decapitadas a passear pelo quintal e a esguichar sangue por todos os lados. Lembro-me de o ministro da Defesa, Veiga Simão - coitado, já morreu - querer à viva força que se fizesse alguma coisa em relação à ajuda humanitária estava a chegar aos Bijagós, estávamos nós a ser bombardeados. "O que vai fazer?", perguntava ele. Tive de responder: "Desculpe, senhor ministro, estou a apanhar com bombas em cima. O que quer que lhe diga?! Está preocupado com a ajuda humanitária que está a chegar às ilhas? Sei lá da ajuda humanitária..." E nisto, dou uma palmada com toda a força no tampo da mesa e ouve-se um estrondo: "Olhe, caiu agora mesmo uma aqui ao meu lado". Tive de fazer aquele golpe de teatro para ele perceber. São cenas que vivi. Depois de tudo, no fundo, pensava que de alguma forma me poderiam compensar. Mas não: "Agora vai para a Costa do Marfim".
Onde as coisas também não estavam pacíficas. Como reagiu?
Houve uma altura em que eu disse ao ministro. Vim passar o Natal, um navio da Marinha levou-me para Cabo Verde, de Cabo Verde apanhei o avião para Lisboa, e estive a conversar com o ministro e disse-lhe: "Isto é uma situação única, nenhum colega meu foi sujeito a uma situação destas. É uma insuportável, não posso estar ali todo este tempo nestas condições, de maneira que agradeço que faça alguma coisa". "Ah, mas está lá há pouco tempo". De facto, estava lá há um ano e tal, mas em condições singulares, uma situação muito complicada e completamente desprotegido. Ficou de pensar no assunto, mas acredito que não tenham gostado. Talvez pensassem que estava a fugir, quando aquilo é na verdade esgotante. Para ter uma ideia, devido à falta de vitaminas e de proteínas, o meu cabelo e o da minha mulher caía aos punhados. Não havia em Bissau uma manga, um ananás, uma banana, os rebeldes foram às árvores e apanharam tudo. A cidade estava sitiada, pilharam tudo, tínhamos de comer uns enlatados vagos que para ali estavam e acabou, era isto.
Alguém foi substituí-lo?
Foi, foi. No mês final da guerra foi para lá António Dias, que já faleceu, e que aguentou a parte final. Ao fim de um mês, Nino Vieira acabou por se render, e a partir daí aquilo entrou em normalidade, entre aspas, porque a Guiné-Bissau nunca teve normalidade nenhuma: matam-se uns aos outros, fazem golpes de Estado sucessivos...
"NA GUINÉ É QUE ESTAVA O PROBLEMA MAIOR. A GUINÉ POSSUÍA ARMAMENTO JÁ MUITO SOFISTICADO, ALÉM DISSO, SUCEDE QUE NOS ÚLTIMOS ANOS AMILCAR CABRAL CONSEGUE ALGUNS TRUNFOS DIPLOMÁTICOS MUITO IMPORTANTES"
Voltando atrás, à Guerra do Ultramar, falo com ex-combatentes que me dizem que a guerra em Angola e Moçambique estava ganha e que o grande problema era a Guiné. Concorda?
Angola não tinha praticamente guerra, tinha muito pouco, uma coisa pontual aqui e ali. Moçambique era um pouco diferente, porque o território é muito extenso; nas regiões centro e sul não havia praticamente nada, mas a norte existiam alguns problemas e a área era vasta. De qualquer maneira, estava controlado. Na Guiné é que estava o problema maior. A Guiné possuía armamento já muito sofisticado, além disso, sucede que nos últimos anos Amilcar Cabral consegue alguns trunfos diplomáticos muito importantes: é recebido pelo Papa e depois declara a independência da Guiné-Bissau, mesmo sob a ocupação portuguesa, e consegue ser reconhecido pela ONU. Podíamos aumentar a luta no terreno? Podíamos. Quanto mais tempo? Não sei. Seria sempre um grande sacrifício e, por um território tão pequeno, valeria a pena? Hoje sabe-se que Marcello Caetano deu ordem para haver negociações secretas - secretíssimas - com o PAIGC. As primeiras negociações têm lugar em março de 1974, em Londres, com o cônsul-geral em Milão, depois embaixador, Villas Boas, que escreveu isso num livro de memórias. É destacado para essa missão e vai a Londres falar com Victor Saúde Maria, ministro das Relações Exteriores do PAIGC, depois primeiro-ministro da Guiné-Bissau. O segundo encontro estava marcado para maio de 1974, mas já não se realizou porque veio o 25 de Abril. Se as negociações iriam avante é outra história, Villas Boas conta que a dada altura lhe dizem que ele não está credenciado para negociar com eles [Guiné-Bissau].
Aproveitamos ou desaproveitamos a relação de Portugal com África?
Atualmente a relação com África é muito difícil. A presença da China em toda a parte, em Angola, em Moçambique, é uma evidência. No âmbito da CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa] começamos a perder pontos, porque o cimento que nos unia era a língua, mas com a entrada da Guiné Equatorial, que nem português fala, um capricho de Angola (mais ninguém queria), está a diluir-se. Os angolanos são muito susceptíveis ao discurso chinês, de maneira que é complicado. Ainda no que toca à CPLP, o desinteresse do Brasil, neste momento, pesa muito. A política externa brasileira tem muito peso, e quando não estão interessados, não estão interessados mesmo. E eles é que mandam, são mais de 200 milhões. E depois, os anos da crise em Portugal deram muito conta disso, perdemos muita embalagem, foi difícil e humilhante, tornou-se impossível manter estas relações.
Matou alguém na guerra?
Que eu saiba, não. Mas vi morrer, das duas vezes. Vi coisas incríveis.
A diplomacia mudou muito de então para cá?
É uma carreira profissional muito tradicional. Mas os desafios que se colocam hoje são outros. Sucede que no passado os embaixadores tinham plenos poderes - que eu já não tive -, mas hoje são os primeiros-ministro que se encontram em Bruxelas, que vão às conferência da ONU, da NATO, falam uns com os outros por telefone, na Internet... É evidente que o embaixador ou diplomata reporta e informa sobre o que se passa no local, como fiz na Guiné, mas a margem de manobra é deles. É preciso atuar muito no campo económico e, por vezes, não há orientações precisas.
Esse foi um problema que teve na Guiné. Aconteceu em mais alguma missão?
Certa vez, quando estava na Índia, o governador de Goa entregou-me uma lista de onze projetos de investimento. Um era um projeto tripartido Portugal/Goa/Qatar, para o fornecimento de gás natural a toda a costa de Malabar, inclusive a Bombaim. O Qatar fornecia o gás natural, Goa era a base e Portugal dava a expertise, o know-how. Outro projecto era o metro de superfície em Pangim. Outros eram um investimento na indústria hoteleira, investimentos em infra-estruturas e na rede viária, sobretudo no sul de Goa, desenvolver praias e tudo o mais, fazer um call centre gigantesco, para servir também o mundo lusófono... Mandei isso tudo para a entidade responsável, não cito o nome, que se encarregava desse tipo de coisas. SAPO.PT