ENTREVISTA: Fernando Jorge Pereira
FOTOGRAFIA: Elca Pereira
Domingos Simões Pereira, Presidente do PAIGC
Com as constantes violações dos direitos humanos e liberdade de imprensa e de outros direitos que se verificam no país, os guineenses parecem alimentar alguma expetativa na fiscalização da comunidade internacional. Como vê o papel dos parceiros externos nesta conjuntura?
Eu sempre disse e continuo a acreditar que o papel da comunidade internacional não é de substituir as nossas instituições. Terão que ser os guineenses a assumir as suas responsabilidades, a criar mecanismos de resistência, e a criar opiniões que possam meter pressão sobre o poder político, de forma a poder respeitar as regras democráticas. Agora é óbvio que a comunidade internacional tem um papel neste contexto. E qual é esse papel? É fazer uma leitura da situação política nacional e dar a conhecer a sua posição, se está próxima daquilo que são os ditames constitucionais e democráticos, ou não está. E quando um poder se afasta daquilo que são os princípios democráticos, a comunidade internacional tem a obrigação de demonstrar indisponibilidade em acompanhar esse regime. Não precisa armar gente para vir fazer guerra ou fazer política em nosso lugar.
E esse puxão de orelhas é suficiente?
Eu tive oportunidade de participar em vários exercícios e pareceu-me que esses exercícios podiam resultar em algo concreto. Vou dar alguns exemplos. Há pouco mais de dois anos esteve no país uma missão das Nações Unidas, conduzida pelo moçambicano João Bernardo Honwana. E essa missão convidou-nos a uma grande discussão e na altura sugeri a missão lançar uma reflexão sobre a validade do princípio de subsidiariedade que as Nações Unidas aplicavam. Porque o princípio de subsidiariedade que diz que nós pertencemos à CEDEAO, e portanto a CEDEAO é que representa a visão do Conselho de Segurança, na realidade o que faz é colocar a frente de decisões muito importantes da comunidade internacional um elemento da sub-região. E quando se coloca um elemento da sub-região a tratar de um assunto, por exemplo da Guiné-Bissau, primeiro, esse elemento da sub-região está mais propenso a ouvir o seu chefe de Estado, do que a ouvir as Nações Unidas. Porque quando termina a sua missão, vai para junto do seu chefe de Estado e não para as Nações Unidas. A segunda questão é que organizações como a CEDEAO muitas vezes enfrentam problemas financeiros. Portanto, acaba sendo uma questão de quem tem disponibilidade. É preciso mandar uma missão para a Guiné-Bissau. Mas quem tem disponibilidade para financiar esse programa para a Guiné-Bissau? Vai ver que invariavelmente são entidades e nações que têm interesses na Guiné-Bissau. E quando alguém tem interesse dentro do próprio país, vai seguir a sua agenda e não vai seguir a agenda internacional.
E como é que o princípio da subsidiariedade deve ser acomodado para não permitir a prevalência de agendas particulares?
- Através das Nações Unidas. Ou seja, a ONU deve ter sempre a última palavra. E portanto a CEDEAO, a União Africana, a CPLP ou a União Europeia, todos podem ter uma função, mas deve ser sempre sob o chapéu da ONU. E a representação deve ser sempre de alguém fora da sub-região. E a decisão deve ser sempre tomada em assembleia, reunindo todas as partes envolvidas. Quando as Nações Unidas ganham distância e esperam que a CEDEAO resolva, para depois levar a validação ao Conselho de Segurança, assim fica tudo enviesado. Como é que espera que um guineense acredite que o senegalês que está na Guiné-Bissau está para nos assistir? Porque que a ONU evita mandar para os países cidadãos de territórios limítrofes? E porque que esse princípio não é observável na CEDEAO?
Aparentemente, a sua inédita audiência com o Presidente Embaló tinha por razão principal defender a não dissolução da Assembleia, e não negociar a participação do PAIGC no Governo de iniciativa presidencial?
Não foi só a razão principal, mas também a única razão. O problema é que a partir do momento em que se equaciona a dissolução do Parlamento, estamos a anular uma legislatura. Portanto, era e continua a ser inconcebível que eu, enquanto presidente do partido, com base nesta avaliação, não marcasse presença para que, tendo terminado uma legislatura, e estando a começar uma nova legislatura, o PAIGC possa participar no diálogo político para novas eleições. Eu seria o único responsável pelo PAIGC não poder participar no processo de diálogo para a nova legislatura. O que as pessoas confundem é exatamente isso. A partir do momento que se dissolve a Assembleia, não há legislatura. A legislatura acabou.
Mas ao ir a audiência, apesar de não reconhecer legitimidade ao chefe de Estado, não estaria a tentar abrir um espaço de diálogo para encontrar uma saída ao bloqueio do congresso do seu partido, assim como para pôr termo às perseguições de que tem sido alvo por parte do Ministério Público?
Eu compreendo quem pense dessa forma. E é óbvio que quando as pessoas falam estão mais próximas de chegar a entendimentos. Uma audiência que estava prevista para 10/15 minutos, acabou por ter uma 1 hora e 40 minutos de conversa, e provavelmente ajudou em muitos aspetos. Por isso é que digo que é triste desperdiçar oportunidades como essa. Porque custou-me tomar a decisão de ir ao palácio. Mas sendo uma necessidade objetivo por parte do meu partido, considerei que a minha visibilidade pouco contava e fui. E aproveitei essa oportunidade para realmente abrir vários quadrantes de diálogo, que me pareciam poder realmente resgatar o país. Não só para mostrar o erro que foi a dissolução do Parlamento. E à saída dei o tal exemplo da bomba atómica, dizendo que quem tem bombo atómica, não tem bomba atómica para lançar, porque a partir do momento em que se lança a bomba, acabou. Não há como recolher os destroços e evitar as consequências. Nós chamamos a atenção para isso, e dissemos que era uma análise desenquadrada dizer que vamos dissolver o Parlamento, porque o Parlamento não se entende. Ainda bem. Se o Parlamento não se entende, ainda bem. Porque? Porque é suposto o Parlamento ser a miniatura da sociedade guineense. E se conseguirmos concentrar numa miniatura aquilo que é o problema da sociedade, então estamos bem. Agora acabamos com a miniatura, todos os problemas voltam a sociedade. Mas as pessoas vão dizer não, o Domingos terá aproveitado a audiência com o Sissoco para falar das restrições que pendem sobre ele, da questão relativa ao congresso do PAIGC. Eu posso lhe garantir três coisas. A primeira é que essa minha ida foi o meu único contato com Sissoco Embaló. Não houve mais nenhum outro contacto direto. Durante a audiência, em nenhum momento levantei essas questões relativas à minha perseguição. Se bem me lembro, o comandante Manecas ( Manuel dos Santos, veterano e um dos históricos dirigentes do PAIGC, de origem cabo-verdiana) foi quem disse a Sissoco Embaló, como é que você quer apaziguar o ambiente político nacional, se continua a perseguir o PAIGC e o seu presidente. E deu outros exemplos, nomeadamente o recenseamento dos funcionários públicos em curso. E contou que foi para a reforma em 1992, e nessa altura organizou toda a sua papelada e a reformou foi publicitada no Boletim Oficial. Achava que não fazia sentido e não compreendia como é que lhe pediam hoje que fosse a todos os sítios por onde já tinha passado, pagar gente para lhe passar uma declaração, gente que era miúda quando ele deixou de trabalhar. Se o Estado não faz o seu trabalho e não tem capacidade de poder saber quem fez que percurso, ele teria que se submeter a este tipo de vexame, para o seu nome poder figurar na folha de reformados.
E não pediram a cabeça do ministro do Interior, Botche Candé?
Em nenhum momento. Não falamos de nomes de ministro, nem de quem devia ser posto ou tirado. Compreendo que as pessoas possam fazer deduções. E porque a dedução? Foi dito nessa audiência e sobretudo nos encontros posteriores, que para o PAIGC se sentir a vontade a colaborar e a participar da governação, tem que ter o mínimo de garantia de que os atos que têm acontecido não voltem a acontecer. E para nós havia dois/ três mecanismos para tal. Esta questão de não interferência do poder judicial na agenda política, era uma das formas. E a não perseguição de atores políticos e da sociedade civil é outra. E aí eu entro obviamente, enquanto cidadão. Mas nós não fomos lá dizer, agora tem que levantar não sei quê em relação. Falamos no geral, até porque os casos mais graves não foram connosco. A tentativa de assassinato do deputado Agnelo Regalla não foi necessariamente com o PAIGC. No decorrer das negociações, quando começamos a ver que havia dificuldade em dar evidências concretas de que essas práticas não voltariam a acontecer, então sim, os elementos que participaram nesse encontro disseram nessa altura que a única forma de garantir isso é substituir aquelas pessoas que tiveram práticas que realmente não nos dão essas garantias. E vejamos dois exemplos muito concretos. Então dissolve-se o Parlamento e queixa-se de que o governo tem feito isto e aquilo. Escolhemos dois indicadores que têm sido particularmente evidentes daquilo que tem sido a atuação do governo. A violência e a corrupção. E tudo isto está ligado à governação. Qual é a face mais visível da questão da segurança quando olhamos para o governo? É o ministro do Interior. E qual é a face mais visível na gestão dos dinheiros públicos? É o ministro das Finanças. Então fala de segurança e de corrupção e mantém os dois titulares? O que vai mudar? Mas em nenhum momento exigimos a cabeça deste ou daquele alguém, mas a aplicação rigorosa dos princípios ia lá dar.
Como é que explica a ausência do PAIGC neste governo de iniciativa presidencial?
Desde o momento em que foi lançado o processo de diálogo, a nossa interpretação é de que X Legislatura acabou, e tendo terminado esta legislatura e iniciada a XI, com as próximas eleições, há duas opções: ou não se convida nenhum partido e cria-se um governo neutro e equidistante do jogo político, se for possível, ou faz-se de tal forma que os partidos se sintam equilibrados lá dentro. Quando se começa por colocar um primeiro-ministro, da forma como foi colocado, e um vice-primeiro-ministro, a coisa começa a ficar enviesada, e o PAIGC disse, nós já percebemos que vai ser mais do mesmo. A nosso ver, participar ou não participar no governo não é o mais importante. Podem até ficar com o governo, desde que os princípios que defendemos sejam realmente salvaguardados. É óbvio que esta posição não é subscrita por todos dentro do partido. Quando nós, apesar de todas as promessas feitas e de tudo o que foi dito, chegamos ao dia D e essas garantias não estavam na mesa, eu conclui que não ia decidir em nome dos órgãos superiores do partido. Por isso, convoquei o Bureau Político (BP). E depois de ter feito um resumo de tudo o que aconteceu, ao BP coloquei duas questões: não temos essas garantias, mas o BP pode decidir que, apesar da ausência dessas garantias, vamos avançar. Nessa altura, é o BP que avançou e não o Domingos que decidiu. Ou o BP diz, vamos parar aqui. Fizemos tudo o que dependia de nós. Participamos do diálogo e dissemos tudo aquilo que pensávamos e agora paramos. Se eles quiserem um entendimento connosco, farão também um esforço. Foi isso que foi levado à votação, não a entrada ou não no governo. E a maioria escolheu a segunda opção. Já mostramos disponibilidade, aceitamos o diálogo e apresentamos contrapropostas, agora chega. Deixemos que eles decidam o que bem entenderem. Por isso é que eu sempre disse, que não podemos ser nós a decidir porquê que não entramos. Fizemos tudo o que dependia de nós. Não sendo possível, para nós isso não é o mais grave. Mas não temos condições para nos identificarmos com esta governação, sobretudo depois de manterem os principais atores. Porque no fim o quê que ouvimos? Que o Presidente quer manter e já manteve o primeiro-ministro, o vice-primeiro-ministro e quer manter o ministro das Finanças, do Interior, da Defesa, da Administração Territorial, dos Negócios Estrangeiros, das Pescas e dos Transportes. Manter não, mas quer ter o direito de ser ele a escolher os titulares dessas pastas. Portanto, não há necessidade de mais conversas.
Mas na Defesa, nas Pescas e na Administração Territorial houve troca de titulares.
Não posso confirmar ou desmentir, mas o que nos chegou aos ouvidos é que o Presidente reservava a si o direito de escolher quem é que seria colocado nessas pastas. Mas então, como ele disse desde o início é um governo dele, e se é um governo dele, estamos conversados.
Nos mais de dois anos do regime de Sissoco Embaló, verificou-se uma agravação da violência política, que culminou com o atentado contra o deputado do partido União para a Mudança, Agnelo Regalla, em maio último. Qual é a sua perceção?
Houve realmente um elevar da fasquia, que nos surpreendeu. Já conhecíamos os sequestros, as agressões e a supressão de liberdades civis políticas e individuais, mas nunca atentados com armas de fogo contra pessoas neste tipo de situações. Coloca-nos numa situação complicada. Todos ficamos apreensivos, por nós e por todos os que exercem atividade política, mas sobretudo pelo próprio país. Porque quando se chega a esse ponto, e nós sabemos que muitos daqueles que fazem essas agressões são jovens, que podem não ter a verdadeira dimensão daquilo que isso representa. Porque começar isto muitas até é fácil, mas a sua envolvência e as implicações, às vezes nos escapam. Por isso ficamos apreensivos. Repare que até em Portugal há confrontos entre ativistas políticos guineense na diáspora. Pessoas a serem ameaçadas de ataque se não deixarem de atacar este ou aquele, em Portugal. Quem podia imaginar a Guiné-Bissau a exportar a violência política.
E em relação à sua pessoa, ainda vigora a proibição de viajar? E as tentativas de levantamento da sua imunidade parlamentar?
Eu nem sei dizer. Terei provavelmente que comprar uma passagem para poder verificar se continua ou não, o facto é que as afirmações que são feitas apontam nesse sentido. Apesar do tribunal ter dito que não havia matéria para tal medida, e apesar da Assembleia ter reiterado a manutenção da minha imunidade parlamentar, as leis continuam a ser aplicadas de forma seletiva. E o Procurador diz claramente que não tem obrigação de respeitar o Supremo Tribunal de Justiça e não tem obrigações perante a Assembleia. Por isso é que eu disse na tal audiência que temos uma nova modalidade no país. Quem quer ser nomeado Procurador-Geral da República tem que prometer que consegue prender o Domingos. Que venham prender e levem, agora se estão à espera de terem alguma substância jurídica para o efeito, não vão ter. Porque cada um promete quando chega e depois vai compilar os elementos e chega à conclusão que não tem nada. Eu fui primeiro-ministro durante 13 meses e antes disso fui ministro duas vezes. Portanto, deixei muitos traços, que estão nas mãos de quem exerce o poder. Se tivesse cometido alguma fraude, até hoje não descobriram nada? Então o ex-Presidente Mário Vaz não exibia um dossiê e dizia aqui está. E onde é que estão essas evidências? Agora não, agora o problema mão é esse. o processo relativo ao resgate. O que é resgate? É uma autorização que dei ao ministro das Finanças para negociar com os bancos o alívio da pressão da dívidas, do crédito malparado dos privados. Assinei-o em 31 de julho, e eu fui demitido 12 dias depois. Mas o processo prosseguiu e tornou-se efetivo em novembro, quando eu já não estava ligado a nada. Acionaram um processo judicial ao ministro das Finanças, no entanto o juiz concluiu que não há matéria para julgar o ministro. Mas o mesmo processo judicial ainda continua em relação ao Domingos. Ou seja, aquelas pessoas que devem dinheiro aos bancos, que criaram essa situação de bloqueio, permanecem incólumes. E até são elas próprias que as vezes metem queixa.
O caso do avião suspeito de transportar droga ou armas e que estava retido na pista do aeroporto desde finais de outubro de 2021 parece ter caído no esquecimento.
Eu vou lhe dizer que este assunto foi uma grande surpresa para mim. Já tinha escutado que o avião já tinha deixado Bissau, mas hoje mesmo ouvi que ainda continua cá. Sabe, isto tem a ver com a natureza de determinados regimes. Quando o Estado não se assume como pessoa de bem, e não alinha com princípios e regras claras, é nisto que dá. Todos nós enquanto cidadãos, somos impelidos a especular. Porque temos uma versão do primeiro-ministro, temos outra da Aviação Civil, do Presidente e também da Polícia Judiciária. Nestas circunstâncias, qualquer um escolhe a versão de que mais gosta. O primeiro-ministro foi ao Parlamento dizer que o aparelho tinha algo, por isso é mandou retê-lo, mas algum tempo depois indicou que, felizmente, não tinha nada. Por seu lado, o Presidente alegou que o avião pertence a gente de bem, e que por isso é que autorizou a sua entrada. Mas depois há um perito americano que veio e garantiu que não precisa encontrar mercadoria dentro do avião, e que podia fazer peritagem para saber o que o avião andou a transportar. Mas o expert americano é detido. Ma se você sabe que o avião é de gente de bem e que só transportou mercadorias autorizadas, porque detém o especialista que veio fazer peritagem aos materiais que estavam no avião? E agora vamos continuar a especular. E a última especulação que ouvi é que o avião não sai porque para sair tem que ter destino, e ainda não há nenhum país em condições de aceitar que vai receber o avião. Porque? Porque durante o período em que o avião ficou parado aqui criou-se uma situação a nível da segurança internacional, com todos os holofotes atentos, à espera de ver para onde vai o avião. Portanto, o país que aceitar receber o avião corre o risco atrair toda a atenção das várias agências que trabalham com as questões de terrorismo. Mais uma vez, estou a especular, porque até aqui é o que nos é dado a fazer.
Outro caso, mas mais polémico, foi o de “1 de fevereiro” último. Propôs criar uma comissão de inquérito incluindo elementos da comunidade internacional. Ainda tem dúvidas sobre a versão oficial do caso?
Como sabe, a justiça tem esta exigência, que é de decifrar o que aconteceu, materialmente, acima de qualquer dúvida, e uma vez decifrada, aí vamos verificar as implicações. Se não saímos ainda da componente material, como é que chegamos à componente política? O grande problema é esse. São realmente os atacantes do Palácio do Governo que estão detidos? E os ditos cabecilhas do assalto, são eles os cabecilhas? Quem sabe? Repare, eu mesmo sendo um actor político, também sou um cidadão, e no dia dos acontecimentos, fui seguindo o caso como todo o mundo, a medida as reportagens estavam a chegar. E quando me dizem que foram cinco horas de tiroteio, eu pensei, das duas uma, ou o local está completamente destruído, porque eram disparados obuses e outras armas pesadas. Mas afinal só partiu um vidro, em cinco horas de tiroteio. E perguntei sobre a segurança das pessoas que lá estavam. Ainda estou para conhecer uma pessoa dos governantes que lá estavam que tivesse sofrido algum arranhão. Cinco horas de tiroteio. Quando tudo terminou, ficamos à espera de informações. A primeira informação veio do Presidente da República, segundo o qual o ataque foi um ajuste de contas entre narcotraficantes. Narcotraficantes? No próprio dia sabe a natureza do ataque? Das duas uma. Ou houve diálogo com eles no momento da operação, ou conhecia essas pessoas, para saber que era um enfrentamento de narcotraficantes. Algumas horas depois no dia seguinte veio a dizer-se que no assalto estavam elementos da rebelião do Casamansa. Os rebeldes do Casamansa também vieram por causa da droga, ou por outras razões? Nessa mesma altura o porta-voz do governo chamou o nome de cinco oficiais militares em como eles estariam envolvidos no ataque. Depois de toda essa confusão, vem uma outra informação dizer que os militares e nenhum quartel tomou parte na tentativa de golpe. Quando ouvi isso, pensei que isso confirma que não se tratava de nenhum golpe de Estado. Porque já tivemos uma série de tentativas de golpe, mas eu pelo menos não conheço nenhuma situação dessas em que os militares não estivessem envolvidos. Quem é que pode dar golpe se os militares não estão envolvidos? É com base nisso tudo que eu falei aquilo que todos os cidadãos falam e aquilo que as entidades oficiais tinham obrigação de respeitar, que é criar uma comissão de inquérito competente, vocacionada e credível, e para ser credível é que dizíamos que seja integrada por elementos de agências especializadas no combate ao narcotráfico e ao terrorismo, e que possa fazer um trabalho que depois de ser apresentado terá realmente a confiança de nós todos. Quando isso não acontece, agora vamos escolher de forma seletiva quem vamos acusar. E finalmente ouvi a entrevista do advogado de uma das pessoas presas a dizer que o Ministério Público concluiu o seu trabalho e elaborou um documento com nota de soltura, mas mesmo assim as pessoas não são soltas por outras orientações que não as judiciais. Mas em que país estamos?
"O PERIGO DO NÃO-ESTADO E DO CAOS’’
Qual é a conclusão disto tudo?
Não posso concluir nada. Uma vez disse uma coisa, e as pessoas acharam que era um exagero. Não sei se é um exagero. Eu disse que estamos a caminhar para uma situação de não-Estado. Porque quando começas a usar a força pela força, estás a convidar as pessoas a defenderem-se com a sua força E isso é uma situação de não-Estado e aí é que está o perigo. E é esse perigo que eu tento mostrar, mesmo aqueles que pensam que têm poder. Porque o poder é relativo, muito relativo. Provavelmente aquele que pensa que tem o poder não é quem carrega a arma, porque ele pensa que dá ordens e o que carrega a arma faz o que ele manda. E quando deixar de obedecer? Entrámos no caos, e é esse caos que temos de evitar, porque o caos não é favorável a ninguém. Leva-se muito tempo a aprender isso, mas devia ser a primeira lição que devíamos todos aprender. As pessoas dizem que o Domingos é diplomata e não sei mais quê. A política é suposta ser um exercício teórico. Não de meter medo ao outro. Agora tu tens que estar de acordo comigo, porque eu tenho mais força. Será que isto é política?
Outra questão problemática para o seu país é a relação com o vizinho Senegal, em particular o acordo sobre a gestão da Zona Marítima Conjunta, que o Presidente Embaló assinou com o seu homólogo de Dacar, mas que uma resolução do Parlamento de Bissau considero nulo e sem efeito. Acompanha este dossiê?
Eu tive a oportunidade de falar deste assunto com o então Presidente Mário Vaz, e em pelo menos duas ocasiões com Macky Sall, o chefe de Estado senegalês, e dizer-lhe qual era a minha visão e a minha expetativa. O Senegal é um país estável e uma democracia já bastante mais consolidada e sempre considerei que podia ser uma referência positiva para a Guiné-Bissau. Numa das conversas que tive com o Presidente do Senegal, e era uma conversa absolutamente amigável, disse-lhe que na minha avaliação Senghor, o primeiro chefe de Estado senegalês, pode e será sempre considerado o pai do Estado senegalês, e para mim Abdou Diouf será sempre o pai da democracia senegalesa. E por esta ordem eu considero que o Presidente Abdoulaye Wade é quem lançou o programa de infraestruturação do Senegal. E depois perguntei a Macky Sall qual seria o seu legado. E ele retorquiu, perguntando-me também se eu achava que eles já tinham feito. Respondi-lhe que não, mas que teria de continuar um pouco daquilo que os seus predecessores já tinham feito. E então ele quis saber a minha visão sobre o que devia ser feito. Disse-lhe que a minha visão é que ele devia ter uma agenda pan-africana. O desenvolvimento dos nossos países será muito difícil se não congregar um movimento bastante mais abrangente. Na nossa sub-região, ter um conjunto como a Guiné-Conacri, Guiné-Bissau, Gâmbia, e Senegal, numa mesma perspetiva de desenvolvimento, pode ser a grande alavanca para o nosso desenvolvimento. E acho que neste grupo de países o Senegal tem todos os requisitos para ser realmente a grande referência. Mas para que tal aconteça, é preciso que a estabilidade não seja exclusiva de Dacar, mas que também prevaleça em todos os países da sub-região. E para que a infraestruturação não se limite apenas ao Senegal e possa alargar-se aos países vizinhos. E na altura dei o exemplo da linha férrea que se estava a projetar entre Dacar e Ziguinchor, no Casamansa, sul do Senegal. E perguntei-lhe de que serviria isso. Uma coisa absolutamente diferente era quando somos capazes de ligar a capital senegalesa a Boké, na Guiné-Conacri, e o Mali. Ai é outra coisa. Ai vamos criar nós de desenvolvimento, que vão realmente impulsionar outros níveis da qualidade de vida dos nossos cidadãos. Sempre acreditei que o Senegal e outros países podem realmente desempenhar este papel. Infelizmente, o tempo depois mostrou que o Presidente não partilhava da minha visão. Mas espero que, se não ele, que sejam outros estadistas senegaleses a compreenderem que têm a obrigação de evitar que os guineenses continuem a desconfiar da boa ou má vontade dos senegaleses. Porque todos sabemos da fragilidade do Estado guineense, agora aproveitar dessas fragilidades para penalizar ainda mais a Guiné-Bissau, não é uma boa estratégia para o Senegal. Eu sempre disse e insisto que gosto do Senegal e dos senegaleses. Tenho lá amigos e familiares, mas não posso deixar de gostar mais da Guiné-Bissau. E se isso é um crime, não tenho como.
Para muitos guineenses este diferendo com o Senegal sobre o acordo na zona marítima conjunta onde há petróleo pode se revelar uma autêntica bomba atómica.
Absolutamente. Países frágeis podem se dar ao luxo de permitir essas incógnitas, esses tiros no escurso. Mas um país consolidado como o Senegal não devia ir por essa via. A questão do petróleo é sempre muito sensível. Falei disso no primeiro encontro que tive com o Presidente do Senegal. Disse-lhe que subsistem estereótipos, muitos complexos e o guineense olha para o senegalês sempre como um djila, comerciante ambulante. Por seu lado, os senegaleses olham para o guineense, e pensam que somos todos guerreiros. E propus-lhe que nos reencontremos, que sentemos à mesma mesa, com os artistas, os fazedores de opinião, os intelectuais, e nos conhecermos, e ao conhecermo-nos, não termos o complexo de debater os nossos assuntos. E quais são os nossos assuntos? Há um princípio da intangibilidade das fronteiras herdadas do período colonial, do respeito pelas fronteiras existentes no momento da acessão à independência, que foi adoptado em 1958. Como é que depois descobrimos que se faz referência a um acordo de 1960, para dizer que esse acordo estabelecido é que delimita as fronteiras entre a Guiné-Bissau e o Senegal. Naquela altura a Guiné podia não ter muitos quadros e o Senegal provavelmente tinha muito mais, mas hoje temos. Vamos sentar a uma mesa e vamos perguntar porquê que os ângulos que definem a nossa plataforma continental têm uma curvatura, que fecha as nossas águas, enquanto que para todos os outros países é diferente. Porquê que é assim? Na quela altura o fiel depositária da fronteira do Senegal era a França, enquanto da Guiné era Portugal. Mas nas negociações na Holanda, quem foi advogar a causa da Guiné-Bissau foi a Argélia. Manifestamente, não tínhamos os suportes necessários. Mas hoje há teses sólidas de estudiosos guineenses sobre esta matéria. Então num país normal não devíamos já ter colocado à volta de uma mesa todas essas competências e dizer-lhes, gente nós somos irmãos dos senegaleses e não queremos guerra com eles. Mostrem-nos o que é do nosso direito. E a partir do momento em que esses direitos estejam definidos, o chefe de Estado da Guiné-Bissau devia sentar-se com o seu homólogo do Senegal e dizer-lhe, este é o entendimento que os guineenses têm desta problemática, e perguntar-lhe o entendimento que os seus técnicos em relação a isso. Vão explicar. E a seguir vão encontrar uma terceira entendida, neutra, que se senta entre ambos e diz as regras que estão a ser aplicadas para a definição da plataforma continental são estas. E é isto que deve ser seguido. Mas não. Em vez disso, o que o ouvimos do chefe de Estado guineense é não e não. Não tenho a obrigação de ouvir ninguém. Eu não tenho que seguir a Assembleia Nacional Popular para resolver um problema deste. Começou por garantiu que não assinou nenhum acordo secreto sobre o petróleo com Dacar, mas finalmente acabou por reconhecer que realmente assinou. O que é isto?
E o primeiro-ministro levou um ano para ir ao Parlamento informar que o acordo foi rubricado sem o seu conhecimento.
Isto é sério. Sem querer desculpar a parte guineense, conhecendo as nossas fragilidades, estou mais propenso a compreender porquê que as coisas acontecem como acontecem na Guiné. Uma comparação que ilustra bem esta fragilidade, é o facto do Senegal, em 66 anos de independência ter tido quatro Presidentes da República, enquanto nós já vamos em quase dez em 49 anos de soberania. Sendo mais consolidado que a Guiné-Bissau, o Senegal tinha a obrigação de promover uma visão pan-africana. E nessa visão pan-africana convencer o povo guineense que não está a tirar nenhuma vantagem, mas está a apoiar a Guiné-Bissau no seu processo de consolidação e de desenvolvimento. Quem não faz isso do lado do senegalês, não está a ajudar o Senegal, porque está a consolidar o sentimento dos guineenses, de que estamos a ser roubados.
Como analisa a outra questão não menos problemática, e que pode causar danos às relações com Dacar, que é a vinda de uma missão militar da CEDEAO?
Como todos os casos que mencionou, penso que é importante não fazer as coisas à revelia das leis e da preocupação dos cidadãos. Quando se força a barra, normalmente a coisa não corre bem. Repare que uma missão da CEDEAO é sempre apresentada como uma missão de estabilização e de paz. Ora não se pode promover a estabilidade e a paz sem o contributo dos guineenses. Portanto, as primeiras pessoas que precisam saber que realmente é uma missão de paz são os guineenses. E o primeiro erro é vir sem um mandato. E o segundo erro é envolver militares de países limítrofe, que no imaginário do guineense podem ter outra agenda. É absolutamente falsa a comparação que se faz de que antes já tinham vindo outras missões de paz da CEDEAO. Mas não é esse o problema. Na primeira vez que veio uma missão, ela foi solicitada pelo Presidente Nino, e nós vimos o que acabou por acontecer. Mesmo nessa altura a Assembleia reuniu-se para o efeito, mas concluiu que não tinha capacidade para se pronunciar, porque prevalecia então a lógica de guerra. O africanista sueco da Universidade de Uppsala, Lars Rudebeck, considerou essa sessão parlamentar de histórica, por ter ousado reunir-se e concluído que não tinha condições para deliberar. E portanto, colocaram nas mãos do Presidente, que tinha suspenso a Constituição, a tomada de decisão. Logo que houve um cessar-fogo, após o Acordo de Abuja, ai a Assembleia foi chamada a pronunciar-se, para que a ECOMOG pudesse vir. Essa foi a primeira missão. A segunda missão foi a da União Europeia, que tinha só 120 homens, que vinha só para garantir a segurança das pessoas que vinham trabalhar no projeto da reforma do Sector da Defesa e Segurança. Em relação à MISSANG, não tem rigorosamente nada a ver. Veio depois da tentativa de levantamento militar de 1 de abril de 2010, e acompanhei todo o processo. Numa reunião da CPLP em Luanda, perguntou-se ao então Presidente Malam Bacai Sanhá se trazia uma solicitação formal do Governo guineense, com base numa resolução da Assembleia. Quando ele disse que não, o assunto foi adiado para setembro, em Nova-Iorque. Aí ele já levava a nota que demonstrava que havia consenso entre os órgãos de soberania sobre esta matéria. E foi nessa altura que se lançou a ideia de uma força da CPLP para a Guiné-Bissau. Mas os outros países não estavam disponíveis, Angola avançou com a Guiné-Bissau. Nessa altura achei que era uma péssima decisão, e vim até Bissau chamar a atenção para os riscos que essa missão comportava.
Como é que explica que já se encontrou mais que uma vez com o Presidente João Lourenço, e este ainda não recebeu o Sissoco Embaló?
O Presidente de Angola é presidente do MPLA. E eu sou líder do PAIGC. E é importante as pessoas terem presente que as relações entre o MPLA e o PAIGC existiram antes mesmo da existência dos respetivos Estados. É uma relação histórica, desenvolvida pelos ex-líderes e que nós temos a obrigação de prosseguir. Eu não fui recebido só uma vez pelo Presidente João Lourenço. E o mesmo era válido para o próprio Eduardo dos Santos, com o qual me encontrei várias vezes. Encontrei-me com João Lourenço já várias vezes, e talvez seja relevante dizer que os nossos encontros aconteceram também antes de ele ser Presidente do MPLA e presidente de Angola. Mesmo em situações particularmente difíceis para ele. E considero-o de certa forma um amigo. Portanto, não devia estranhar às entidades oficiais um encontro entre nós, porque tem um componente de foro pessoal e outro partidário. E tenho quase a certeza de que vai haver um encontro entre ambos, e se ainda não aconteceu deve ser porque as respetivas agendas não o permitiram. Eu sei que Angola, o MPLA e o Presidente Lourenço respeitam as instituições e com base nisso saberão separar as águas. E havendo uma coincidência de datas, lugar ou visitas, esse encontro acontecerá. Aliás, já houve uma visita, por ocasião de uma cimeira da CPLP em Luanda. Acho que estamos perante uma tentativa de criar problemas lá onde eles não existem.
Os projetos da Bauxite Angola no sector de Boé e de construção do porto de Buba estão em ponto morto há uma década. Tem informações sobre estes dossiés?
Não conheço a situação do projeto de exploração de bauxite, mas há novos desenvolvimentos em relação ao porto de Buba. O BAD financiou a atualização dos estudos de viabilidade, para a montagem de um novo projeto. No início do atual mandato não se acautelou a questão das relações com Angola, que devia ser suprapartidária. Angola é um parceiro importante para a Guiné-Bissau. Devido a todo o carinho e atenção demonstrados por Luanda em relação ao nosso país, por mais fraturantes que sejam as nossas querelas internas, devíamos evitar de nos imiscuirmos neste tipo de quezílias. Por mais amigo que ache que sou e posso ser do Presidente Lourenço, tenho sempre o cuidado de não parecer que estou a beliscar o outro lado ou outra pessoa. Eu não faço parte do debate político em Angola e por isso tenho a obrigação de respeitar as pessoas. Porque algo não me favorece, não posso pôr em causa toda uma relação. Põe em causa as relações e depois quer reconstituir as relações e fica difícil. Não estou a admitir que seja esta a razão para o maior esfriamento das relações com Angola. Pode ser uma das razões, mas não é a única.
Angola não tem embaixador em Bissau, mas abriu uma embaixada em Dacar.
Não tem. Mas também aí está. Há uma redefinição de toda a geopolítica. Está a acontecer com a União Europeia. Se não tivermos capacidade de manter um programa de cooperação mutuamente vantajoso as pessoas vão reequacionar o nível das relações.